quinta-feira, 9 de agosto de 2012


ESPIRITUALIDADE, RELIGIÃO E PSICOLOGIA




Introdução


Na história da sociedade ocidental podemos perceber o desenvolvimento de grandes campos de conhecimento, caminhos para a procura do que é ser humano e de como é que este ser humano pode viver e se relacionar em contato com o mundo ao seu redor. Dentre eles, podemos destacar as trilhas da Filosofia, da Arte, da Ciência e da Religião. Houve, no entanto, na Idade Média, um predomínio dos caminhos da fé, caracterizada à época por muitas disputas de poder e por dogmas que continuam existindo até hoje, afetando corações e mentes das pessoas com seus ideais por mais desajustados que sejam às necessidades da vida moderna.

Emergiu, como o advento da sociedade moderna e burguesa, como contraponto a esta forma de dar sentido para a existência, o caminho científico, centrado na razão e postulando o ser humano como a medida para tudo, o ápice da evolução e da vida. Como ainda vivemos nesta sociedade, ainda que contemporaneamente muitas transformações superficiais mascarem uma mesma estrutura tão ultrapassada quanto o feudalismo, a estrutura do modo de produção burguês, torna-se mais difícil, às vezes, perceber as invisíveis amarras às quais ainda nos mantemos aprisionados, as ilusões que pagamos tão caro para continuar afastados de nossa verdade mais profunda.

No entanto, na contramão dos que afirmam estar esta babilônica sociedade moderna ainda de vento em popa, como fosse verdade eterna destinada a durar para sempre, há os que buscam novos caminhos para o significado da vida humana, aqueles cujas perguntas existenciais não podem ser saciadas pela lógica do consumo e d imediatismo que marcam esta sociedade. É daí que surge uma nova busca espiritual, dissociada agora das tradições religiosas esgotadas e fechadas em seus dogmas, buscando ir além da lógica medonha do consumismo desenfreado e querendo encontrar um sentido mais profundo para a experiência humana, acreditando ainda ser possível construirmos um mundo de paz e de irmandade, de harmonia e de elevados valores como amor ao próximo realmente colocados em prática. A nova busca espiritual é a busca do que é ser humano, de como podemos ser humanos melhores, de como podemos estar em conexão e coexistência com tudo o que é vivo, como podemos atravessar o paradigma da competição e abraçarmos uma perspectiva de cuidado, com nosso coração, com nosso ser mais profundo, com o amor que podemos viver em nossas existências, potenciais inexplorados das nossas dimensões ainda distantes.

Discutiremos então o que é espiritualidade, estabelecendo uma relação dela com a religião, com a nossa forma de encarar a realidade, com a Psicologia e com o modo como podemos enxergar o ser humano. Este texto é uma elaboração posterior de nossa primeira aula de Psicologia e espiritualidade, disciplina optativa ministrada pelo professor doutor Gustavo Alberto Pereira de Moura no curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, UFC, no semestre de 2011.1. Trata de uma introdução que tivemos a oportunidade de fazer para a disciplina, abordando os múltiplos aspectos da espiritualidade, em comparação principalmente com a Religião e com a Psicologia.



Espiritualidade e Religião


Iniciaremos nossa exposição com o artigo de Stanislav Grof, “Breve História da Psicologia Transpessoal.” Segundo ele, a espiritualidade está baseada em experiências diretas dos aspectos e dimensões incomuns da realidade. Na visão que defende o autor, a mediação do contato com o divino não requer um lugar ou templo especial ou uma pessoa ou sacerdote designada oficialmente, como podemos ver acontecer na religião institucionalizada. Os verdadeiros místicos, salienta ele, não necessitam de igrejas ou templos. O contexto no qual eles encontraram experiências sagradas e de êxtase, as dimensões sagradas da realidade, incluindo suas próprias dimensões imanentes e profundas, onde habita o SER ao qual podemos nomear de divindade, são seus corpos e a natureza. E ao invés do ofício ou da permissão de qualquer forma de sacerdote, os místicos na verdade necessitam de um grupo de apoio de companheiros e buscadores ou a orientação de um professor que está mais avançado nas jornadas internas do que eles próprios. A espiritualidade envolve, assim, um tipo especial de relacionamento entre o indivíduo e o cosmos e é, em sua essência, um evento pessoal e privado.

A religião, por sua vez, conforme aponta Grof, quando organizada e institucionalizada, pode ser vista como uma atividade de grupo, que acontece em um local designado, um templo ou uma igreja e envolve um sistema de oficiais nomeados que podem ou não podem ter tido experiências pessoais de realidades espirituais, o que os tornará mais ou menos sensíveis para esta dimensão da realidade. Grof atesta, pesarosamente, que, no momento em que uma religião se organiza, como frequentemente podemos constatar em nossa sociedade moderna, ela perde em parte ou até completamente a conexão com sua fonte espiritual, diminuindo-se em uma instituição secularizada que, em alguns casos, é capaz até de explorar as necessidades espirituais humanas, sem satisfazê-las. Sem contar o fato de que algumas religiões organizadas tendem a criar grandes sistemas hierárquicos, focados na perseguição do poder, do controle, da política, do dinheiro, das posses e outros interesses seculares, em detrimento da promoção da dimensão espiritual. Sob essas malogradas circunstâncias, a hierarquia religiosa, via de regra, conforme denuncia o autor, desagrada e desencoraja experiências espirituais diretas em seus membros, porque teriam elas o potencial para criar independência, fazendo com que as pessoas não possam ser controladas.


“A verdadeira espiritualidade é universal e abrangente, e baseia-se na experiência mística pessoal ao invés de dogma ou escrituras religiosas” salienta Grof, enquanto que, na maioria das vezes as “religiões, em suas formas atuais, são parte do problema ao invés de parte da solução.”


Vale observar que muitas pessoas precisam das religiões, enquanto que muitas outras necessitam trilhar a jornada da espiritualidade e, assim sendo, a humanidade, em sua constante evolução, deve cultivar a validade de ambas as vias. O grupo pode servir para a massificação, como ocorre em muitas vezes, afastando o individuo de seu verdadeiro ser, mas a socialização, que pode acontecer dentro de uma religião, pode fornecer para o sujeito caminhos, os quais ele deverá tomar como modelos para percorrer sua própria jornada. O problema acontece quando temos aquela postura dogmática que afirma que “somente minha religião é a que salva”, infelizmente tão comum em nossa sociedade. Contudo devemos ressaltar também que na história da humanidade tivemos e ainda teremos muitos líderes religiosos e espirituais que dedicaram suas vidas a salvar e a libertar seres humanos, e isso não somente em uma religião, mas em todas elas. Nestes casos, o que acontece é que a vida espiritual e a vida religiosa estão harmonicamente integradas com a evolução pessoal e espiritual destes seres humanos, o que, de acordo com nossa perspectiva, é o que deve acontecer e é o que queremos promover. Para concluir, apontamos que não importa que nome damos, se é religião, se é espiritualidade, se é religiosidade, se é transformação da consciência, se é iluminação ou salvação, o que importa é que busquemos realizar a dimensão mais profunda de nosso ser.



Espiritualidade e Realidade


Podemos iniciar abordando a questão da transformação em nossa concepção da realidade que ocorreu com a mudança de paradigma, da Física Clássica para a Física Quântica. As descobertas da Física Quântica nos serviram enquanto humanidade como ferramentas para o questionamento da realidade, desde uma dimensão absoluta (paradigma newtoniano-cartesiano), onde temos um universo material, com tempo e espaço com dimensões bem definidas, até uma constituição indescritível, metaforicamente e talvez literalmente fluida, para além da nossa percepção ou compreensão (novo paradigma quântico-holístico). Dentro desta perspectiva, também na psicologia podemos apreender um movimento de passagem do velho paradigma para o novo, o que ocorreu dentro do movimento transpessoal e da psicologia transpessoal.


“A Psicologia Transpessoal representa uma mudança de paradigma na Psicologia Ocidental, resultando em parte da exposição a crenças interculturais sobre a natureza da consciência e da realidade.” (WALSH; VAUGHAN, 1991).


De acordo com os autores WALSH e VAUGHAN, a Física Quântica está apta a revelar, nos dias de hoje, um quadro que se assemelha de perto, sob muitos aspectos, às milenares descrições do Oriente e de suas percepções espirituais de sabedoria, onde encontramos uma realidade caracterizada por ser holística, além de interconectada, indivisível. “Não apenas cada parte do universo se acha ligada a toda outra parte”, apontam os autores, “mas que cada parte do universo, e na verdade todo o universo, está entrelaçada com todas as outras partes” (WALSH; VAUGHAN, 1991).



Espiritualidade e Visão do Humano


Em sua “Antropologia”, Roberto Crema (2002) explora quatro paradigmas para o humano que podem ser encontrados tanto nas psicologias como um todo como nas filosofias, religiões e formas de abordar e estudar o ser humano.

O primeiro pressuposto é o materialista, que afirma ser o humano apenas mais um animal, oriundo da evolução estritamente biológica da vida em nosso planeta. Está ligado à ciência materialista ultrapassada do século XIX, mas ainda hoje encontra dogmáticos defensores que afirmam ser o homem apenas seu corpo, ser a consciência um epifenômeno do cérebro, etc. Há, em segundo, o pressuposto psicossomático, que acrescenta a dimensão psicológica, porém a compreende como separada de outras questões fundamentais para o ser humano, como o sentido da vida e a espiritualidade, as quais acabam sendo relegadas.

Há, ainda, o pressuposto psico-somático-noético, fundamental para a compreensão do humano, onde podemos perceber uma abertura para a dimensão do sentido, para a alma, a dimensão contemplativa silenciosa da consciência sem objeto. Está presente aqui também a dimensão simbólica e imaginal. Esta visão pode ser desenvolvida através, por exemplo, de algumas das tradições sapienciais da humanidade, como o zen-budismo.  

Por fim, há, na quaternidade, a inteireza humana, pressuposto psico-somático-noético-pneumático, onde a totalidade do SER nos pode ser apresentada. Esta dimensão inclui o Mistério, com m maiúsculo, onde podemos apontar para o sagrado, para o Absoluto que nos ultrapassa, que nos transcende. No terceiro pressuposto encontramos auto-realização, e no quarto temos a auto-transcendência. É no quarto pressuposto que a dimensão espiritual do ser humano pode ser integrada. Citamos o autor:

“Numa singela e bela lição, Buda perguntou a seus discípulos: “O que é o oposto da morte?”Com a mente binária, todos responderam: “Vida”. Ao que o mestre sentenciou: “Não; é o nascimento, pois a Vida é eterna!” E Cristo afirmava ser o doador de Vida, de Vida em abundância: “EU SOU o Caminho, eu sou a Verdade, eu sou a Vida”. Nosso composto trinitário existencial é atravessado pelo Mistério da Vida e, agora, estamos diante do pressuposto antropológico que da guarida à vastidão do fenômeno humano: psico-somático-noético-Pneumático” (CREMA, 2002, p.33).


Roberto Crema continua sua exposição do profundamente humano nos falando das diversas estações do AMOR: segundo ele, “aprender a amar é a primeira e derradeira lição na escola da existência” (CREMA, 2002, p.35).

Para ele há um último pressuposto que precisa ser apontado, pois em nós evoca a etapa suprema na arte de amar: o amor pneumático, transumano, transpessoal. É, para o autor, o amor em seu modo de ser ontológico, que é gratuito e incondicional. Amor, desta forma, é amor espiritual, por tudo o que existe e mais além, pelo que é transcendente. Amar, nesta perspectiva, é um estado de abertura da dimensão do coração, e de atenção, de cuidado, de acolhida e de escuta. É respeitar a totalidade que habita em nós e nos outros, e talvez em tudo o que existe. “É o amor que transcende a criatura, o amor da fonte, o amor da Vida por Ela mesma” (CREMA, 2002, p.37).



Espiritualidade e Psicologia


Segundo o que podemos apontar através de Roberto Crema (2002), o sentimento de amor é a forma de promover a terapia do mistério, das dimensões misteriosas de nosso ser, e, como foi afirmado por um mestre da sabedoria, o amor é a tecnologia mais sofisticada de todos os universos. Os mais plenos e autênticos terapeutas, portanto, conforme acrescenta o autor, são os homens e mulheres que aprenderam a amar totalmente, buscando-a sempre na profundidade de nosso ser, fazendo um exercício total de doação à humanidade como um todo e à humanidade em cada um.

Conforme Welwood (2003), o trabalho psicológico pode ajudar bastante na abertura do coração, onde pode ser localizada e realizada a dimensão do amor, mas o despertar completo exige o desapego, a relativização do eu, e a entrega, sentimentos típicos do caminho espiritual. Em seu trabalho de terapeuta ele aponta ter percebido que é preciso permanecer sempre em contato com as dimensões do céu, da terra e do coração, todas elas ao mesmo tempo.

Ainda em Welwood (2003), encontramos que o trabalho psicológico ajuda a lidar com a dimensão da forma, enquanto que, por sua vez, o trabalho espiritual enfatizará o que pode ser percebido como além da forma, o transpessoal, o ilimitado. No final, ele acrescenta que a abertura para este espaço mais amplo ao redor das estruturas é o que nos possibilita que, metaforicamente, as brisas frescas da mudança e da renovação continuem circulando em nossas vidas e nas vidas de nossos pacientes.



Conclusão


Quando os indígenas nativos americanos acendiam seus cachimbos, acreditavam que o subir da fumaça levava as orações da tribo para a nação das estrelas. Nos dias de hoje, em que o mundo anda cada vez mais desequilibrado, nos questionamos se não está faltando ao ser humano uma parte sua, se não estaria ele preocupado em demasia em encontrar no consumo e não em si mesmo, em sua consciência, em sua espiritualidade, esta dimensão de conexão com o mistério que nos circunda.

É irônico como aquelas pessoas que riem e falam pejorativamente da espiritualidade são as mesmas que buscam afogar-se em álcool ou em festas intermináveis, assim como o consumo de substâncias tóxicas pesadas. Sendo elas tão certas de que a dimensão espiritual não existe, por que é mesmo que buscam nas drogas uma conexão com alguma sensação de bem esta ilusório? E o consumismo desgovernado, aquela necessidade de comprar mais um carro, mais uma casa, mais um livro, mais um lanche? Nossa sociedade está cada vez mais doente, sufocada em tanto apego à superficialidade, às ilusões do ego e das dimensões mais rasas do ser, enquanto que a propaganda nos obriga a acreditar que somos livres e donos de nossas vidas, mas que devemos ter medo da espiritualidade e do autoconhecimento, estas coisas místicas que deixam as pessoas estranhas e fora da realidade.

O mundo precisa de um sentido, de uma renovação de seus valores. A espiritualidade aponta um caminho para aprendermos a abrir nossos corações, aprendermos a ir além de nossos egos, de nossa pequenez à nossa plenitude. Caso compreendamos até aqui que a espiritualidade é uma dimensão fundamental do humano, é nossa busca entender como cultivar nosso ser mais profundo, nossa conexão com a vida e com os mistérios do universo. É este tipo de reflexão que nos torna humanos. Que a fumaça da fogueira sagrada leve nossas preces para as estrelas, para que seja semeada uma nova ordem cósmica.




Referências:



CREMA, Roberto. ANTIGOS E NOVOS TERAPEUTAS. Abordagem transdisciplinar em terapia. Petrópolis: Vozes, 2002.

GROF, Stanislav.
Breve História da Psicologia Transpessoal.
Fonte: http://www.aljardim.com.br/pt.htm. Acesso em 2011-02-18 às 16h30min.

GROF, Stanislav. Psicologia do Futuro, lições das pesquisas modernas da consciência.
Niterói, RJ: Heresis, 2000.

WALSH, Roger N.; VAUGHAN, Frances. ALÉM DO EGO.
Dimensões Transpessoais em Psicologia. São Paulo: Cultrix, 1991. 

WELWOOD, John.
Em busca de uma psicologia do despertar: budismo, psicoterapia e o caminho de transformação espiritual.
Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

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