quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A RELIGIOSIDADE NA PSICOLOGIA ANALÍTICA



INTRODUÇÃO


Admirado por muitos, repudiado por outros, Carl Jung representou um papel fundamental para a Psicologia, criando uma abordagem que caminha para tornar-se uma via clássica, epistemologicamente sólida devido à alta competência de seu criador e aos anos de árduo trabalho em sua elaboração. A Psicologia Analítica é crescente tendência hoje, inclusive na academia, quando começam a tomar cada vez mais corpo as discussões e o interesse no caminho desenvolvido por Jung. Para a Psicologia Transpessoal, Jung é colocado como um precursor, alguém que abriu caminhos para pensarmos o ser humano para além de seu ego ou eu consciente, haja vista que a personalidade humana apresenta muitos outros aspectos a serem descortinados. O eu e a consciência deste eu não são a totalidade do ser, e o trabalho de Jung, por um lado pioneiro, por outro um dos mais competentes, deve ser compreendido quando pensamos em caminhos para a Psicologia no século XXI.
O texto presente, para o blog, é parte de uma elaboração posterior de uma aula que tivemos a oportunidade e o prazer de ministrar na disciplina de Psicologia e Espiritualidade, da qual obtivemos a bolsa de iniciação à docência. O professor doutor Gustavo Pereira de Moura, ao qual somos imensamente gratos, nos ofereceu a oportunidade de ministrarmos sobre psicologia analítica e espiritualidade, pedindo para que ressaltássemos a dimensão religiosa e transpessoal na Psicologia Analítica, haja vista que é uma leitura sua, ou por ele comumente divulgada, a de que pode ser encontrada, para além da Psicologia Transpessoal, a Dimensão transpessoal nas Psicologias de modo geral. Mais precisamente, Jung utilizou o termo religiosidade, diferenciando-o de profissão de fé, de maneira análoga a diferenciação didática que fazemos entre espiritualidade e religião. Trabalharemos a questão a partir do texto de Nise da Silveira, a psiquiatra responsável por trazer a Psicologia Analítica de Jung para o Brasil.


PSICOLOGIA ANALÍTICA E RELIGIOSIDADE

Para abordamos a temática da religiosidade em Jung, utilizaremos o texto de Nise da Silveira (SILVEIRA, 1981). Segundo ela, Jung usa a palavra religião no sentido de religio (re e ligare), tornar a ligar. Religar o consciente com certos poderosos fatores do inconsciente a fim de que sejam tomados em atenta consideração.
Estes fatores, de natureza arquetípica, caracterizam-se por suas fortíssimas cargas energéticas e seu intenso dinamismo. Aqueles que os defrontam falam de uma emoção impossível de ser descrita, de um sentimento de mistério que faz estremecer (mysterium tremendum). Para designar esta vivência Rudolf Otto (2009) criou o termo: numinoso, experiência do numinoso, expressões que Jung adotou. Santo é um termo que expressa algo mais do que bom, e este algo mais é o numinoso, um termo que contém um excedente de significação que vai além do racional (OTTO, 2009). Todas as religiões originam-se basicamente de encontros com esses fatores dinâmicos do inconsciente, seja em sonhos, visões ou êxtases. (SILVEIRA 1981).
Segundo a autora, esses fatores apresentam-se encarnados em imagens dos mais diversos aspectos: deuses, demônios, espíritos. Para ela, Jung reconhece “todos os deuses possíveis e imagináveis, sob a condição única de que sejam ou tenham sido atuantes no psiquismo do homem".


A IMPORTÂNCIA DA RELIGIÃO

Do ponto de vista de Jung, ainda segundo SILVEIRA (1981), a religiosidade é uma função natural, inerente à psique. Para Jung a religião apresenta-se como um fenômeno genuíno, expressão legitima do ser humano, o que é diferente de algumas compreensões que visam patologizar a dimensão da espiritualidade, aproximando-a ou a igualando aos transtornos mentais. Jung toma atitude positiva em relação às religiões. Todas são válidas na medida em que recolhem e conservam as imagens simbólicas oriundas das profundezas do inconsciente e as elaboram em seus dogmas, promovendo assim conexões com as estruturas básicas da vida psíquica (SILVEIRA, 1981). Fazemos a diferenciação, no entanto, apontando que Jung defendia a religiosidade, uma vida na qual os símbolos religiosos estariam vivos e atuantes, mas a ele não agradavam as profissões de fé, onde se encontram símbolos mortos e dogmas ultrapassados com regras que mais nos afastariam da dimensão do sagrado que nos religariam.


REALIDADE PSÍQUICA E RELIGIOSIDADE

Para SILVEIRA (1981), não importa que todas as afirmações religiosas sejam impossibilidades físicas. “o critério de uma verdade não é apenas seu caráter físico: há também verdades psíquicas que, do ponto de vista físico, não podem ser explicadas ou demonstradas, nem tão pouco recusadas“ (JUNG apud SILVEIRA, 1981).
O estudo da religiosidade humana tem um princípio muito importante que é o da realidade psíquica, postulado por Jung. Para ele, a única realidade a qual temos acesso é a realidade psíquica, oriundas de um processo de representação e significação do mundo, o externo, a vida, a natureza e a cultura, e o interno, as fantasias, os símbolos, os afetos, os produtos do inconsciente. Para melhor compreendermos, chamamos para o diálogo o autor JESUINO:
“o mundo que interessava a Jung era o mundo psíquico, visto que, por não nos ser dada a conhecer a natureza do mundo externo ou do interno, sequer poderíamos dizer se, em última instância, são duas coisas ou uma só. Do ponto de vista psicológico, porém, podemos verificar que se apresentam como pólos para a consciência, Deste ponto de vista, o único aspecto que podemos lhes apontar em comum é que desconhecemos sua natureza.” (JESUINO, 2008, p.122).

Assim, retomando nossa linha de raciocínio, conforme o concito de realidade psíquica, não podemos afirmar se existem ou não existem os fenômenos como fatos, não podemos dizer se Deus existe de fato, por exemplo, mas podemos dizer que, na realidade psicológica, existe o fato de as pessoas crerem em Deus. Do mesmo modo, podemos compreender que, em Jung, não se pode afirmar definitivamente que qualquer crença religiosa é verdadeira ou falsa em si, se é uma realidade concreta, ainda que seja uma realidade psíquica, pois não temos certezas absolutas sobre esta outra realidade e nem sobre nossa própria realidade.
A título de exemplo, tomemos uma pessoa que acredite em milagres. Não importaria para Jung se os milagres são ou não de fato reais, mas mais o importaria o fato de que esta pessoa crê, pois, de modo independente de uma realidade concreta, temos uma realidade simbólica na qual esta pessoa está inserida e na qual ela vivencia e organiza suas experiências, devendo então ser validada pelo estudante ou pelo psicólogo. A nível coletivo, interessará para a psicologia como objeto de estudos as grandes práticas espirituais, por exemplo; o que faz milhares de pessoas acreditarem em discos voadores, independentemente de eles existirem ou não? Que fatores psíquicos seriam estes que estariam atuando na psique individual e coletiva? Assim, defendemos, deve proceder o profissional de Psicologia no relacionar-se com a religiosidade de seus pacientes. Do ponto de vista da realidade psicológica, é um fato que as pessoas vivenciam de diferentes modos e em diferentes culturas uma espiritualidade ou uma religiosidade, e este fator, em si, faz desta uma questão fundamental para a psicologia. É a espiritualidade uma realidade em todas as culturas e em todas as épocas, o que a torna um fenômeno psíquico suficientemente digno de ser apreciado pela pesquisa em psicologia.


LINGUAGEM SIMBÓLICA

A autora SILVEIRA (1981) nos aponta que a linguagem das religiões é feita de símbolos, e esses símbolos, ao longo dos tempos, sem dúvida têm atuado profundamente sobre a vida dos homens. Merecem, portanto, a atenção do psicólogo. Jung interessou-se pelos símbolos de todas as religiões da humanidade, tanto do ocidente quanto do oriente. Entretanto, o autor ocupou-se especialmente em sua obra dos símbolos cristãos, principalmente os interpretando em comparação com a alquimia e com a sua Psicologia Analítica. Como ressaltamos, precisamos de uma religiosidade ou espiritualidade viva, com símbolos atuantes, capazes de ampliar nossas consciências e nos reconectar com a dimensão maior da vida, seja qual for o nome que lha demos.


CONCLUSÕES

Podemos apontar, em suma, como pudemos observar ao longo desta exposição, que a religiosidade conforme Jung é uma função natural da psique. O termo religião, para ele, significa tornar a ligar, nos reconectando com uma dimensão maior à qual pertencemos, por um lado, e ligando os elementos inconscientes com a consciência, fazendo-a ampliar-se, por outro. Jung aponta a existência de uma realidade psíquica, a qual é fundamental para compreendermos e aceitarmos que a religiosidade ou espiritualidade é uma dimensão real e atuante nas nossas vidas psíquicas, ainda que não seja material, palpável ou concreta. A linguagem das religiões é simbólica, e é preciso que busquemos nos habituar a ler e a compreender esta linguagem para aprendermos o que querem nos ensinar as tradições religiosas.
Segundo SILVEIRA (1981), através das páginas das MEMÓRIAS, Jung revela-se como um homem para quem Deus era “uma experiência imediata das mais certas”. Numa entrevista famosa concedida à BBC de Londres dois dias antes de completar 80 anos, Jung declarou: "Não necessito crer em Deus: eu sei (I know).” Com isso, para ela, não pretendeu dizer: “Conheço um certo Deus (Zeus, Jeová, Allah, o Deus Trinitário, etc), mas: sei com segurança que me confronto com um fator desconhecido em si, ao qual chamo Deus".  Jung fez gravar em pedra, no alto da porta de sua casa de Küsnacht, as palavras do oráculo de Delfos: INVOCADO OU NÃO INVOCADO DEUS ESTARÁ PRESENTE.


REFERÊNCIAS


JESUINO, Filipe de Menezes. O Delírio Paranóico no sistema de Freud e Jung: Contribuições Mútuas e Contrastes. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2008.

OTTO, Rudolf. Lo santo: Lo racional y lo irracional en la Idea de Dios. Madrid, Alianza Editorial, 2009.
SILVEIRA, Nise da. JUNG: VIDA E OBRA. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

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