terça-feira, 7 de agosto de 2012


CONSCIÊNCIA, PSIQUE E NATUREZA: ENSAIO DE UMA NOVA ÉTICA PARA UM MUNDO NOVO



INTRODUÇÃO


Vivemos em tempos difíceis, nos quais tudo aquilo que pertence à dimensão da psique é associado como inexistente ou não real. “É só psicológico”, conforme aponta a afirmação do espírito de nossa época, significa que não é nada. Tempos normóticos, nos quais o ter prefigura o ser. Tempos em que nos encontramos dissociados do que nós realmente somos, da nossa psique e da nossa verdadeira natureza. Ainda que estejamos em processo de despertar da amarras da normose consumista e de destruição da natureza, é preciso muito trabalho para que possamos regatar e preservar o nosso planeta, que é nossa casa, e preservar nossa psique, que pertence ao domínio da natureza. Nosso ser nos chama para a grande missão da ampliação e da realização de nossas consciências. Apontar para uma nova forma, e urgente, de nos relacionarmos com nossa psique e com a natureza é o objetivo deste pequeno ensaio. Os caminhos, no entanto, são coletivos, no sentido de que cabe a nós como humanidade escolher seus rumos, e também individuais, no sentido de que caba a cada um fazer sua melhor escolha, escolher viver sob um paradigma doentio e destruidor ou viver em busca de níveis mais elevados de saúde, de consciência e de vida, construindo pontes rumo ao nosso verdadeiro potencial humano.

       
                   
PSIQUE E SEU LUGAR NA NATUREZA


Nos séculos XVI e XVII ocorreu uma mudança de paradigma, ou seja, uma diferenciação radical na maneira como o ser humano encara o mundo, na qual uma metafísica da mente foi substituída por uma metafísica na qual prevalece o material. Esta mudança de paradigma, conforme chamou Thomas Kuhn, é uma mudança radical de interpretação. De modo geral, a perspectiva materialista prevaleceu durante todo o século XX e continua muito forte neste inicio de século XXI. No entanto, Jung, durante toda sua vida e obra, se posicionou contra esta perspectiva, sendo a psique humana um mundo tão vasto e complexo quando o mundo externo (CLARKE, 1993).

VON-FRANZ (1999, p.200) ressaltou que sempre encontrara o que chamava de “preconceitos filosóficos e pseudocientífico-racionais oriundos de século XIX” que para ela já haviam sido descartados pelos cientistas do século XX. Alguns desses preconceitos são os de que sonhos não têm significado, de que não existem fantasmas, de que tudo é material, de que o inconsciente não é verdadeiro e, para ela o pior, o preconceito estatístico, aquele que afirma que “o que eu faço não faz a menor diferença” (idem, p.201), pois somos todos grãos de areia entre milhões de pessoas. Ela ressalta, ao longo de seu trabalho, que, do ponto de vista da vida, absolutamente tudo importa, tudo é significativo.

Segundo CLARKE (1993, p.134) a suposição básica de Jung era a existência de uma psique autônoma, ou de uma autonomia da psique, e a realidade da psique era a hipótese com a qual trabalhava. Na verdade, este procedimento não seria mais fantástico do que postular a existência da matéria. Tanto o materialismo quanto o idealismo seriam posições metafísicas, e sobre a realidade final não poderíamos saber. Isto significa que a visão materialista de mundo está sustentada pela cresça daqueles que a postulam, pois não há provas científicas de que tudo seja material e de que o espiritual não existam. Pelo contrário, há muitos autores que dedicaram suas vidas a apontar caminhos para a exploração da dimensão espiritual, mas, por irem na contramão do paradigma materialista, são irracionalmente descartados a priori pelos pseudocientistas que apenas aceitam sua visão materialista de mundo. Neste sentido, uma estória contada pelo professor Wilson Vasconcelos Jr. na UFC ilustra bem de que estamos falando. Ela diz que quando Louis Paster apresentou na sociedade científica de Paris a existência dos microorganismos capazes de infeccionar feridas, ninguém acreditou em sua apresentação. Ele solicitou que um cientista fosse olhar no microscópio a prova científica da existência destes minúsculos seres, invisíveis a olho nu, e o cientista respondeu “vejo, mas ainda assim não acredito”. Da mesma forma ante todas as experiências e caminhos desenvolvidos para a dimensão espiritual, os cientistas materialistas, defensores de seus dogmas eternos, continuam não acreditando numa dimensão mais ampla, de energia mais sutil, a qual chamamos espiritual. Cabe a cada um de nós reconhecer a existência destes caminhos e os validar. Muitos deles puderam ser apresentados aqui mesmo, em nossa obra.

CLARKE também aponta para Thomas Kuhn e seu livro “A estrutura das revoluções científicas”, ressaltando que os grandes progressos do pensamento científico não podem ser compreendidos totalmente em termos de argumentos racionais ou como uma ininterrupta acumulação de conhecimentos. Ao surgir um Darwin ou um Newton, ocorrem transformações totais, não quais a amaneira de se encarar o mundo foi totalmente modificada.
A psique deve ser encarada como se fosse um ator principal no palco do mundo.  Assim, a encarnação, o corpo, é essencial para a psique, de modo que o corpo é a visibilidade da psique, do mesmo modo que ela, a psique, é a experiência psicológica do corpo, sendo os dois, portanto, interdependentes. Podemos dizer que:

“ela só opera dentro e através do mundo da natureza, é em si um fenômeno natural, “um organismo psíquico vivo”, com características de vida e crescimento análogas às do mundo orgânico” (CLARKE, 1993, p.138).

Assim, para Jung, em sentido lato, a psique é um organismo vivo, que cresce, amadurece, e pode sofrer vicissitudes de maneira análoga ao que acontece com os seres orgânicos. É a psique um afloramento natural, e podemos buscar sua origem no mundo natural, mas “tal como a flor de lótus – para usar a metáfora budista clássica – eleva-se acima de suas origens puramente naturais e as transcende.” (idem, p.138 e139).

Ainda segundo CLARKE, é importante então pensarmos por qual propósito a psique existe, principalmente no que diz respeito à consciência. A razão das funções psicológicas emergirem à luz da consciência é devido ao fato de ela conferir alguma vantagem adaptativa. Ressaltamos o caráter de hipótese do que está sendo aqui apontado. A consciência permitiria nossa adaptação mais bem organizada, permitindo que fôssemos além dos instintos.

“A razão por que a consciência existe, e por que há uma ânsia para alargá-la e aprofundá-la, é muito simples: sem consciência as coisas não funcionam tão bem. Essa é obviamente a razão por que a Mãe-Natureza dignou-se a produzir consciência, a qual é a mais notável de todas as curiosidades da natureza”. (JUNG apud CLARKE, 1993, p.140).

Para finalizar, precisamos então apontar para onde deverá ir a consciência, resguardando a perspectiva teleológica de Jung, segundo a qual tudo o que existe não existe somente por causa de, mas existe para alguma finalidade. Voltando a CLARKE, ele aponta ser a consciência um tremendo experimento que a natureza outorgou para a humanidade. Seu papel estaria associado ao seu poder criador, e é somente através dessa criatividade que o seu humano encontraria seu lugar no grande processo do ser. Assim a criatividade, função da totalidade da psique, que amplia e transforma a consciência, talvez seja o verdadeiro motivo de estarmos aqui, ou pelo menos seria a porta a qual teríamos que ultrapassa para começar a jornada em busca de nossas respostas. A consciência tem o papel ativo de criar, como o artista executa a obra, entretanto a criatividade emerge de profundezas da totalidade da psique, consciente e inconsciente, e é capaz de criar a própria psique, fazendo-a crescer, ampliar-se e transformar-se.



PATOLOGIA COLETIVA DA SEPARATIVIDADE


Ainda que psique e natureza estejam entrelaçadas, não podendo existir de maneira independente uma da outra, vivemos sob a égide de uma patologia coletiva que nos faz esquecer de que dependemos da natureza para nossa própria existência. Enclausurados no paradigma mecanicista newtoniano-cartesiano, acreditamos, ou nos iludimos, agindo como se fossemos independentes do meio ambiente que nos cerca. Esta maneira desviada de ver as coisas foi apontada por WEIL (2011, p.15) como fantasia da separatividade, uma correspondente do conceito de maia da filosofia oriental.

WEIL (idem, p.83) aponta-nos ainda para uma normose de consumismo, uma patologia coletiva que, no entanto, é vista como se fosse normal, segundo a qual acredita-se que os recursos da natureza seriam infinitos, cabendo ao ser humano consumir também de maneira infinita. Agimos como se a natureza fosse criada para nós, e como se pudéssemos dispor dela de maneira irrestrita e a nosso bel prazer, o que está nos levando a um ponto critico de crise civilizacional e planetária. Somente uma nova perspectiva ética, a ética de cuidado integral, baseada em um paradigma integral e holístico, pode nos fazer avançar diante deste desafio evolutivo. Não estamos separados da natureza. Formamos uma unidade indissociável e somos um só com tudo o que é vivo, com todo o nosso planeta e com o cosmos.



ÉTICA DO CUIDADO


De acordo com o teólogo Leonardo Boff (1999, p.133) nosso planeta Terra merece ser cuidado de modo especial, pois temos unicamente a ele para viver e para habitar. Porém, devido ao assalto predatório do processo industrialista dos últimos duzentos ou trezentos anos, estamos à beira de um colapso ambiental. E ainda pisamos no acelerador. “Para cuidarmos de nosso planeta precisamos todos passar por uma alfabetização ecológica” - afirma BOFF, “e rever nossos hábitos de consumo”. Para ele, o velho paradigma, abraçado pelas nações imperialistas, estaria na raiz do problema. “Importa desenvolver uma ética do cuidado”, conclui.

Do mesmo modo que é necessário cuidar do planeta, de maneira universal, precisamos cuidar dos nichos ecológicos, situado a nível local. “o ser humano tem os pés no chão (local) e a cabeça aberta para o infinito (global).” (idem, p.135). Portanto, cada um de nós, como indivíduos e como comunidades locais, precisa descobrir-se como parte do ecossistema local, seja na forma de natureza, seja em seu caráter de cultura. Assim sendo, é preciso ampliar nossa dimensão de cuidado para que possamos apontar para o cuidado com a sociedade sustentável. “Dever-se-ia falar de sociedade sustentável ou de um planeta sustentável como pré-condições indispensáveis para um desenvolvimento verdadeiramente integral” (idem, p.137).

Cuidar do outro deve ser um valor posicionado como principal em nossa abordagem ética. Segundo BOFF, “Cuidado especial merecem os doentes, os idosos, os portadores de algum estigma social, os marginalizados e excluídos” (p.138). Ele aponta ainda para a necessidade de cuidar dos portadores de HIV, dos portadores de necessidades especiais, dos pobres, dos oprimidos e dos excluídos. Cuidar ainda de nosso corpo, da vida que o anima. Segundo ele,

“Cuidar do corpo significa a busca de assimilação criativa de tudo o que nos possa ocorrer na vida, compromissos e trabalhos, encontros significativos e crises existenciais, sucessos e fracassos, saúde e sofrimento. Somente assim nos transformamos mais e mais em pessoas amadurecidas, autônomas, sábias e plenamente livres.” (idem, p.145).

Dentro de nossa perspectiva de ética do cuidado, precisamos estendê-lo para o cuidado com nossa alma, com nosso espírito, com nossa cura integral e com a nossa grande travessia, a morte. Para BOFF, cuidado com a nossa saúde é manter uma visão integral, buscando equilíbrio entre corpo, mente e espírito, visando assim à totalidade de nosso ser humano. Assim, é preciso também cuidar de nossa alma, dos nossos sentimentos, sonhos, visões e utopias, dos desejos mais profundos, de tudo aquilo que guardamos na profundeza do nosso coração. “O ser humano-corpo-alma tem uma singularidade: pode sentir-se parte do universo e com ele conectado” (idem, p.149). Importa cuidar, também, de nosso espírito, dos valores que dão rumo à nossa vida e que geram esperanças para além de nossa morte.

“Os sábios de todos os povos sempre pregaram: sem o cultivo desse espaço espiritual, o ser humano se sentirá infeliz e doente e se descobrirá um errante sedento em busca de uma fonte que não encontra em lugar nenhum; mas se acolher o espírito e Aquele que o habita, se encherá de luz, de serenidade, e de uma imarcescível felicidade” (BOFF, 1999, p.151).

Cumpre-nos o cuidar também de nossa morte, a grande travessia, o que quer dizer que devemos aprender sobre o morrer e o mais além, e aprender a cultivar a esperança, nosso desejo de Infinito. “É meditar, contemplar e amar o Infinito como o nosso verdadeiro Objeto do desejo” (idem, p.153). BOFF conclui: ”é realizar a experiência dos místicos: a vida amada no Amado transformada.” (p.154).



CONCLUSÃO


Esperamos que nossa exposição tenha feito sentido, e encontre ressonância no pensamento de cada vez mais seres humanizados que devemos ser. No plano individual, esperamos que cada um de nó procure e transforme todas as normoses e patologias que nos impedem de ser o que verdadeiramente somos, e que cada um possa abraçar seu caminho de individuação, sua jornada de autoconhecimento e espiritualidade, no sentido de encontro com seu verdadeiro Ser.  No plano coletivo, esperamos que uma revolução paradigmática transforme nossa maneira de nos relacionar com nosso planeta e com a natureza, com tudo o que é vivo. A grande transformação paradigmática que é exigida de nós não pode ser feita individualmente, senão coletivamente, e, no entanto, é preciso que cada um possa cultivar uma nova disposição de consciência, promovendo novos valores mais adaptados com este momento de nossa jornada evolutiva coletiva. É preciso que busquemos nosso verdadeiro SER mais profundo. Somente assim poderemos viver a verdadeira vida. Somente assim poderemos criar um mundo novo. Gostaríamos de concluir com estas palavras, um conto xamânico, apresentado por Roberto Crema:

“Uma anciã indígena conversava com seu neto: Há, no meu coração, dois lobos, meu filho. Um é furioso, cruel, destrutivo, egocêntrico. O outro é doce, amoroso, compassivo, pacífico. Eles brigam entre si, no meu coração. E o neto perguntou: Qual deles vencerá esse combate? E a sábia respondeu: Aquele que eu alimentar!” (CREMA apud WEIL, 2011, p.96).




REFERÊNCIAS


BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: Ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

CLARKE, J. J. Em busca de Jung. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993.

VON-FRANZ, M. L. Psicoterapia. São Paulo: Paulus, 1999.

WEIL, P(org). Normose: A patologia da normalidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. 

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