domingo, 12 de agosto de 2012


PSICOLOGIA E PSICOTERAPIA TRANSPESSOAL



Introdução: Do humanismo à Transpessoal



Descontentes com as linhas de atuação e de interpretação do saber psicológico da Psicanálise e do Comportamentalismo, a primeira e a segunda força em psicologia, alguns sedentos pesquisadores elaboraram a terceira força em psicologia, o que podemos chamar de movimento humanista, que engloba, além das psicologias humanistas, as de caráter existencial e fenomenológico. Ainda que crescesse a popularidade da psicologia elaborada pelo movimento humanista, alguns de seus principais fundadores, Maslow e Sutich, se demonstraram insatisfeitos com o modelo conceitual que eles, originalmente, haviam criado. Segundo Grof, em seu artigo “Breve História da Psicologia Transpessoal”, eles foram se tornando cada vez mais conscientes que olvidaram um elemento extremamente importante do psiquismo humano, que é a dimensão espiritual.

A partir daí, segundo o autor, podemos perceber o renascimento do interesse em várias tradições místicas, em meditação, em sabedoria aborígine e antiga e em filosofias orientais, bem como, presente também com muita força no contexto cultural da época, a experimentação psicodélica, muito difundida durante os tempestuosos anos 60. Tudo isso deixou absolutamente claro, para Grof, que uma abrangente e trans-cultural Psicologia válida precisava incluir observações de semelhantes áreas do conhecimento e da sabedoria milenar humana, abrindo espaço para pesquisas e validando cientificamente experiências espirituais profundas como os estados místicos, a consciência cósmica, as experiências psicodélicas, que eram apontadas como caminhos de exploração da mente, o fenômeno do transe, a criatividade e a inspiração científica, religiosa e artística, dentre outros.

Este texto tem como base a aula que ministramos na disciplina de Psicologia e Espiritualidade em 2011.1, com orientação do professor Doutor Gustavo Alberto Pereira de Moura. O objetivo é falar da Psicologia Transpessoal, aspectos de sua História, sua caracterização e seus princípios psicoterapêuticos.



História da Transpessoal


Abraham Maslow acreditava e defendia que vivenciar o aspecto transcendente de nossas psiques era um importante e crucial exercício em nossas vidas. Esta discussão nos leva ao pensamento holístico, em que pensar de forma holística, não negando, mas sim indo além, transcendendo dualidades como certo, errado, bem ou mal, passado, presente e futuro é fundamental para uma nova forma de se fazer ciência e de se fazer Psicologia, abrindo espaço para explorações cada vez mais profundas da psique.  Maslow declarava que sem vivenciar a dimensão do transcendente ficaríamos doentes, violentos e niilistas, como a nossa sociedade tem se apresentado cada vez mais, e quedaríamos todos vazios de esperança e apáticos, fracos, corruptos, manipuláveis.

De acordo com Stanislav Grof (idem), na segunda edição do livro "Introdução a Psicologia do Ser" Maslow anunciara a organização da quarta força em Psicologia: que haveria de estar para além dos interesses personalizados de nossas pequenas identidades, estando assim mais elevada e centrada no cosmos. Em 1968, ele concluiu:

"Considero a Psicologia Humanista, a Psicologia da Terceira Força, transitória, uma preparação para uma Quarta Psicologia ainda "mais forte", transpessoal, transumana, centrada no cosmos e não em necessidades e nos interesses humanos, que vai além da condição humana, da identidade, da autorealização, etc." (MASLOW apud GROF, in: “Breve História da Psicologia Transpessoal”).

A Psicologia Transpessoal aponta para algo maior do que o que somos, algo que seja respeitado, talvez reverenciado por nós, e ao qual nos entregamos, num novo sentido para nosso SER, que possa ir além da perspectiva materialista. Eminentes autores como Vitor Frankl, Stanislav Grof, James Fadiman e Antony Sutich uniram-se a Maslow e oficializaram, em um congresso realizado no ano de 1968, a Psicologia Transpessoal, enfocando o estudo da consciência e o reconhecimento dos significados das dimensões espirituais da psique. Esse evento foi anunciado por Antony Sutich, em seu artigo “Transpersonal Psychology”.

Podemos, segundo a autora Vera Saldanha, conceituar PSICOLOGIA TRANSPESSOAL como "o estudo e aplicação dos diferentes níveis de consciência em direção à unidade fundamental do ser.” Busca-se então uma unidade entre tudo o que existe, para além dos interesses exclusivos da humanidade ou de uma pequena parte dela. A autora acrescenta: “A visão de mundo, na transpessoal, é a de um todo integrado, em harmonia, onde tudo é energia”, e conclui que esta totalidade estaria “formando uma rede de inter-relações de todos os sistemas existentes no universo” (SALDANHA, Vera apud SIMÃO, Manoel. In: “Psicologia Transpessoal e Espiritualidade”).

Conforme o artigo de Manoel Simão (idem), o termo Transpessoal foi adotado depois de uma considerável deliberação para abranger os relatos de pessoas praticantes de várias disciplinas da consciência e que falavam de experiências de uma extensão da identidade para além da individualidade e da personalidade. Desse modo, não poderemos considerar a Psicologia Transpessoal um modelo de personalidade em termos estritos, porque a personalidade é tida como apenas um dos aspectos da nossa natureza psicológica; a Psicologia Transpessoal é, antes, um instrumento de pesquisa da natureza essencial de nosso SER. O termo, segundo o autor, foi utilizado pela primeira vez na área da psicologia, pelo precursor da Transpessoal Carl Gustav Jung, utilizando a palavra überperson, em 1916, e uberpersönlich, em 1917, que significam supra-pessoa e supra-pessoal respectivamente. Alguns dos pioneiros da Transpessoal foram: Abraham Maslow, Anthony Sutich, Carl Rogers, Stanislav Grof, Ken Wilber, Jean-Yves Leloup, e no Brasil: Pierre Weil, Roberto Crema, Vera Saldanha, e muitos outros.

Ainda conforme o autor, Vera Saldanha, psicóloga, pioneira no estudo e prática da Transpessoal no Brasil em sua tese de doutorado na Unicamp refere, ao formalizar sua investigação, que se deparou com uma literatura vasta em Transpessoal. Sua primeira necessidade foi distinguir alguns conceitos que incluem: o movimento, a experiência e as disciplinas. Para ela, o movimento transpessoal integra as diversas disciplinas que se dedicam à inclusão e ao estudo das experiências transpessoais, e dos fenômenos correlatos a suas aplicações.

Para Walsh e Vaughan, conforme mesma referência, a experiência transpessoal, pode definir-se como “aquela em que o senso de identidade ou do eu ultrapassa (trans + passar = ir além) o individual e o pessoal a fim de abarcar aspectos da humanidade, da vida, da psiquê e do cosmo”.

Em relação às disciplinas que podemos apontar dentro do movimento transpessoal temos a Psiquiatria Transpessoal, a qual se concentra no estudo das experiências e fenômenos transpessoais, enfocando, particularmente, seus aspectos clínicos e biomédicos. A Antropologia Transpessoal, a qual se refere ao estudo transcultural dessas experiências e da relação entre a consciência e a cultura. Há a Sociologia Transpessoal, que estuda as dimensões e expressões sociais desses fenômenos e há a importantíssima Ecologia Transpessoal, que aborda as repercussões e aplicações ecológicas dos referidos estudos (SIMÃO, idem).



Características da Psicologia Transpessoal



1)Temáticas privilegiadas para a Psicologia Transpessoal:


De acordo com BOAINAIN JR, as temática de maior interesse para a Psicologia Transpessoal, e para o Movimento Transpessoal, seriam: 1) A espiritualidade e as dimensões da vida religiosa; 2) As potencialidades últimas e a auto-realização do humano; e 3) Os estados ampliados de consciência, incluso as experiências transpessoais.


2) Modelo de Ciência


Gostaríamos de citar o texto de BOINAIN JR. Elias, “Tornar-se Transpessoal” o qual consideramos importante para abordar esta questão:

 “a visão holística do novo paradigma, que assume como uma das propostas centrais a superação de todas as fronteiras disciplinares e mesmo o rompimento da compartimentalização das áreas do saber humano (donde se vêem crescentes aproximações transdisciplinares entre filosofia, ciência, arte e religião)”.

Conforme vimos, o paradigma holístico, desenvolvido a partir das consequências das descobertas da Física Quântica e Relativística, é o ponto de partida para o movimento transpessoal, que também se apresenta como trans-disciplinar, incentivando o diálogo entre as múltiplas áreas do saber humano e de todas as épocas, visando, assim, uma elaboração mais profunda do ser humano e sua relação com o cosmos.


3)Visão de homem


De acordo com BOAINAIN JR, a visão do ser humano que está presente na abordagem transpessoal implica: 1) Aceitação de instâncias superiores da consciência e do potencial humano; 2) Destaque aos aspectos transcendentes e espirituais; 3) Superação da condição humana para uma condição transumana, transpessoal, cósmica ou mesmo divina (a separação é ilusão); 4) Busca da transcendência como parte da natureza humana; 5) Atenção à busca da realização espiritual (necessidade básica do humano); 6) Busca do crescimento emocional e da satisfação de necessidades superiores; e muito muitos outros aspectos.



Epistemologia da Transpessoal


      Pierre Weil, em seu livro “As Fronteiras da Evolução e da Morte”, conforme o artigo de Manoel Simão, postula alguns princípios epistemológicos que fundamentam a psicologia Transpessoal: 1) Existem sistemas energéticos inacessíveis aos nossos cinco sentidos, mas registráveis por outros sentidos; 2) Tudo na natureza se transforma e a energia que a compõe é eterna; 3) A vida começa antes no nascimento e continua depois da morte física; 4) A vida mental e espiritual forma um sistema suscetível de se desligar do corpo físico; 5) A vida individual é inteiramente integrada e forma um todo com a vida cósmica; 6) A evolução obtida durante a existência individual continua depois da morte física; 7) A consciência é energia, que é vida, no sentido mais amplo: não apenas a vida biológica, física, mas também a da natureza, do Espírito, a vida-energia, infinita na suas mais diferentes expressões; dentre outras. Para uma mais aprofundada exposição, sugerimos o texto original.

Além disso, Pierre Weil especifica distintas áreas de aplicação das disciplinas com orientação transpessoal: Por Educação Transpessoal, podemos compreender o conjunto dos métodos que permitem descobrir ou revelar o transpessoal dentro do ser humano, bem como desenvolvê-lo. Por Psicoterapia Transpessoal, entendemos o conjunto de métodos de tratamento das normoses, neuroses e outras psicopatologias pelo despertar do transpessoal, e das psicoses pela exteriorização do transpessoal que já estaria semipotencializado. Por Terapia Transpessoal, por sua vez, designamos o conjunto de métodos de restabelecimento da saúde integral e holística pela progressiva redução da ilusão da existência de um “eu” separado do mundo, pela ampliação da consciência e pela realização dos aspectos profundos de nosso verdadeiro SER.



Psicoterapia Transpessoal


De acordo com Manoel Simão, a Psicoterapia de orientação Transpessoal visa promover ao cliente a possibilidade de ele se encontrar, o que pode consistir em mapear os seus “problemas” e a situá-los no ambiente social, cultural, familiar, profissional, afetivo, espiritual, etc., o que por si só já é altamente terapêutico e ainda possibilita a diminuição da ansiedade e a potencialização da autoconfiança, requisitos necessários e importantes ao início do processo de auto-cura. Isto porque, dentro desta perspectiva, é a psique quem se cura, através de seus mecanismos de busca do próprio equilíbrio.

O terapeuta que situa suas práticas dentro desta nova abordagem deve ser encarado como um facilitador, que acompanha amorosamente o desenvolvimento psicoespiritual de seus clientes, como se faz, metaforicamente, ao apresentar o solo correto para que possam florescer os botões em um jardim.

Na Psicoterapia Transpessoal nosso dever consistiria, segundo o autor, em conscientizar os clientes acerca da sua natureza e a extensão do seu desalinho emocional, bem como pontuar e passar informações sobre a possibilidade de desenvolver suas potencialidades e capacidades inatas, as acolhendo em seu incipiente surgimento, sendo estas formas trans-convencionais de ser, de recriar-se, de expressar-se, oferecendo recursos para viabilizar seu florescimento.

Para o autor, quando uma pessoa procura a psicoterapia, quase sempre seu objetivo é a diminuição e até a eliminação de um estado de sofrimento decorrente de dificuldades de ordem emocional e, acrescenta, espiritual. No caminho que faz para o interior de si mesma, ela tem a chance de adquirir mais conhecimento de seu verdadeiro modo de SER e de desenvolver-se como pessoa, buscando sua plenitude e realização. No contato consigo mesma, seja para descobrir os recursos pessoais para a evolução, seja para encarar seus “estados de consciência”, como sintomas ou processos defensivos, um guia ou orientador experiente apresenta-se como necessário. Ai está o que parece ser uma das funções básicas do trabalho terapêutico. Sabemos o quanto o acompanhamento de uma ajuda acolhedora e gentil, porém firme e determinada ao apontar para os aspectos corretos do processo é fundamental para que se possa executar os mergulhos nas profundezas do SER mais profundo de cada um de nós.

De acordo com o artigo de Fátima Corga, “Psicologia Tranpessoal”, o que caracteriza um terapeuta transpessoal não é o seu conteúdo, mas sim o contexto. O conteúdo é determinado pela relação terapêutica em si, entre cliente e terapeuta, como, segundo ela, bem o estabeleceu Carl Rogers. Para a autora, um terapeuta transpessoal deve aprender a lidar com os problemas que emergem durante o processo terapêutico, incluindo acontecimentos mundanos, fatos biográficos e problemas existenciais. Contudo o que realmente define a orientação transpessoal é um modelo mais amplo da psique humana, que seja capaz de reconhecer a importância das dimensões espirituais e o potencial que esta dimensão apresenta para a evolução da consciência. O terapeuta transpessoal, assim, deve ser consciente do espectro total das experiências psíquicas de que é capaz o ser humano, e deve sempre acompanhar o cliente em sua exploração de novos campos experiências, quando há oportunidade, não importando qual o nível que o processo terapêutico esteja focalizando.

O próprio Rogers, ainda segundo Fátima Corga, referiu-se muitas vezes em suas últimas obras às percepções transpessoais e fenômenos congêneres de estados sutis de consciência, e estabeleceu ele que estes são eventos observáveis e inerentes ao trabalho bem sucedido com Grandes Grupos e Workshops:

“O outro aspecto importante do processo de formação de [Grandes Grupos] com que tenho tido contato é a sua transcendência e espiritualidade. Há alguns anos eu jamais empregaria estas palavras. Mas a extrema sabedoria do grupo, a presença de uma comunicação profunda quase telepática, a sensação de que existe "algo mais", parecem exigir tais termos” (ROGERS apud CORGA, in: “Psicologia Transpessoal”).

Ainda Rogers: “Tenho a certeza de que este tipo de fenômeno transcendente às vezes é vivido em alguns grupos com que tenho trabalhado, provocando mudanças na vida de alguns participantes. Um deles colocou de forma eloquente: "Acho que vivi uma experiência espiritual profunda, senti que havia uma comunhão espiritual no grupo. Respiramos juntos, sentimos juntos, e até falamos uns pelos outros. Senti o poder de força vital que anima cada um de nós, não importa o que isso seja. Senti sua presença sem as barreiras usuais do 'eu' e do 'você' - foi como uma experiência de meditação, quando me sinto como um centro de consciência, como parte de uma consciência mais ampla, universal” (idem).

De certa forma, de acordo com a autora, Rogers parecia estar indicando que a ACP por ele elaborada, junto com seus colaboradores, estaria se desenvolvendo a ponto de incluir as dimensões transpessoais em seu arcabouço teórico, mas a sua morte o impediu de levar adiante seus insights:

“Tenho a certeza de que nossas experiências terapêuticas e grupais lidam com o transcendente, o indescritível, o espiritual. Sou levado a crer que eu, como muitos outros, tenho subestimado a importância da dimensão espiritual ou mística” (ROGERS, idem).



Conclusão


Em nossa compreensão talvez não exista uma diferença entre Psicoterapia Transpessoal e Terapia Holística, ou Terapia Transpessoal. Da mesma forma, ainda que apontemos diferenças entre as dimensões biológico-corporal-ecológica, social-relacional, psicológica e espiritual-transpessoal do ser humano, acreditamos ser esta divisão um artifício didático, o qual ainda é imprescindível tendo em vista nosso modo de pensar científico afeito às divisões. No entanto, quando superarmos este modo de pensamento analítico e limitante, quando conseguirmos pensar de modo holístico, somente haverá o ser humano, e suas dimensões biológicas, sociais, psicológicas e espirituais formarão uma totalidade, a qual na verdade já formam, e nós a dividimos. O terapeuta será um cuidador do ser humano por inteiro, sua visão será holística mesmo que sua atuação seja pontual, não havendo mais necessidade de diferenciar e, principalmente, não havendo mais hierarquias, entre os diversos níveis do ser terapeuta. Ser terapeuta estará novamente ligado à sua raiz etimológica, aquele que serve a deus, no sentido de atender às leis curativas e transformadoras da natureza, de fazer retornar o desequilíbrio para o natural equilíbrio.

Compreendemos que muito há para avançar em termos de desenvolver uma abordagem terapêutica para o movimento transpessoal. Talvez esta perspectiva também ainda tenha muito a crescer em visão e, principalmente, ainda há muito a ser consolidado. Cada vez mais consideramos, no entanto, que o espaço para a dimensão espiritual cresce por um lado, na medida em que a crise civilizacional de falta de sentido também aumenta, por outro lado. É somente na transcendência do ego que podemos encontrar um novo modelo de civilização, um novo paradigma de humanidade, ou transumanidade. Esperamos que um dia possamos conseguir nos enxergar a todos como irmãos de tudo o que é vivo, como faziam as civilizações mais distantes no tempo. No entanto, nosso destino não é voltar no tempo, e sim avançar, reinventar o que significa ser humano, fazer a humanidade dar mais um passo, o qual esperamos que seja em direção à sua saúde holística, em direção à comunhão com a vida e com o universo.



Referências:


BOINAIN JR, Elias. Tornar-se Transpessoal. Transcendência e Espiritualidade na obra de Carl Rogers. São Paulo: Summus, 1998.

CORGA, Fátima. Psicologia Transpessoal. Fonte: http://www.institutoluz.com.br/?p=artigo16. Acesso em 2011-02-18 às 15h45min.

GROF, Stanislav. Breve História da Psicologia Transpessoal. Fonte: http://www.aljardim.com.br/pt.htm. Acesso em 2011-02-18 às 16h30min.

SIMÃO, Manoel. Psicologia Transpessoal e Espiritualidade. Artigo publicado na Revista Saúde - Universidade São Camilo Ano 34. Fonte: www.alubrat.org.br. Acesso em 2011-02-19 às 16h40min.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012


ESPIRITUALIDADE, RELIGIÃO E PSICOLOGIA




Introdução


Na história da sociedade ocidental podemos perceber o desenvolvimento de grandes campos de conhecimento, caminhos para a procura do que é ser humano e de como é que este ser humano pode viver e se relacionar em contato com o mundo ao seu redor. Dentre eles, podemos destacar as trilhas da Filosofia, da Arte, da Ciência e da Religião. Houve, no entanto, na Idade Média, um predomínio dos caminhos da fé, caracterizada à época por muitas disputas de poder e por dogmas que continuam existindo até hoje, afetando corações e mentes das pessoas com seus ideais por mais desajustados que sejam às necessidades da vida moderna.

Emergiu, como o advento da sociedade moderna e burguesa, como contraponto a esta forma de dar sentido para a existência, o caminho científico, centrado na razão e postulando o ser humano como a medida para tudo, o ápice da evolução e da vida. Como ainda vivemos nesta sociedade, ainda que contemporaneamente muitas transformações superficiais mascarem uma mesma estrutura tão ultrapassada quanto o feudalismo, a estrutura do modo de produção burguês, torna-se mais difícil, às vezes, perceber as invisíveis amarras às quais ainda nos mantemos aprisionados, as ilusões que pagamos tão caro para continuar afastados de nossa verdade mais profunda.

No entanto, na contramão dos que afirmam estar esta babilônica sociedade moderna ainda de vento em popa, como fosse verdade eterna destinada a durar para sempre, há os que buscam novos caminhos para o significado da vida humana, aqueles cujas perguntas existenciais não podem ser saciadas pela lógica do consumo e d imediatismo que marcam esta sociedade. É daí que surge uma nova busca espiritual, dissociada agora das tradições religiosas esgotadas e fechadas em seus dogmas, buscando ir além da lógica medonha do consumismo desenfreado e querendo encontrar um sentido mais profundo para a experiência humana, acreditando ainda ser possível construirmos um mundo de paz e de irmandade, de harmonia e de elevados valores como amor ao próximo realmente colocados em prática. A nova busca espiritual é a busca do que é ser humano, de como podemos ser humanos melhores, de como podemos estar em conexão e coexistência com tudo o que é vivo, como podemos atravessar o paradigma da competição e abraçarmos uma perspectiva de cuidado, com nosso coração, com nosso ser mais profundo, com o amor que podemos viver em nossas existências, potenciais inexplorados das nossas dimensões ainda distantes.

Discutiremos então o que é espiritualidade, estabelecendo uma relação dela com a religião, com a nossa forma de encarar a realidade, com a Psicologia e com o modo como podemos enxergar o ser humano. Este texto é uma elaboração posterior de nossa primeira aula de Psicologia e espiritualidade, disciplina optativa ministrada pelo professor doutor Gustavo Alberto Pereira de Moura no curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, UFC, no semestre de 2011.1. Trata de uma introdução que tivemos a oportunidade de fazer para a disciplina, abordando os múltiplos aspectos da espiritualidade, em comparação principalmente com a Religião e com a Psicologia.



Espiritualidade e Religião


Iniciaremos nossa exposição com o artigo de Stanislav Grof, “Breve História da Psicologia Transpessoal.” Segundo ele, a espiritualidade está baseada em experiências diretas dos aspectos e dimensões incomuns da realidade. Na visão que defende o autor, a mediação do contato com o divino não requer um lugar ou templo especial ou uma pessoa ou sacerdote designada oficialmente, como podemos ver acontecer na religião institucionalizada. Os verdadeiros místicos, salienta ele, não necessitam de igrejas ou templos. O contexto no qual eles encontraram experiências sagradas e de êxtase, as dimensões sagradas da realidade, incluindo suas próprias dimensões imanentes e profundas, onde habita o SER ao qual podemos nomear de divindade, são seus corpos e a natureza. E ao invés do ofício ou da permissão de qualquer forma de sacerdote, os místicos na verdade necessitam de um grupo de apoio de companheiros e buscadores ou a orientação de um professor que está mais avançado nas jornadas internas do que eles próprios. A espiritualidade envolve, assim, um tipo especial de relacionamento entre o indivíduo e o cosmos e é, em sua essência, um evento pessoal e privado.

A religião, por sua vez, conforme aponta Grof, quando organizada e institucionalizada, pode ser vista como uma atividade de grupo, que acontece em um local designado, um templo ou uma igreja e envolve um sistema de oficiais nomeados que podem ou não podem ter tido experiências pessoais de realidades espirituais, o que os tornará mais ou menos sensíveis para esta dimensão da realidade. Grof atesta, pesarosamente, que, no momento em que uma religião se organiza, como frequentemente podemos constatar em nossa sociedade moderna, ela perde em parte ou até completamente a conexão com sua fonte espiritual, diminuindo-se em uma instituição secularizada que, em alguns casos, é capaz até de explorar as necessidades espirituais humanas, sem satisfazê-las. Sem contar o fato de que algumas religiões organizadas tendem a criar grandes sistemas hierárquicos, focados na perseguição do poder, do controle, da política, do dinheiro, das posses e outros interesses seculares, em detrimento da promoção da dimensão espiritual. Sob essas malogradas circunstâncias, a hierarquia religiosa, via de regra, conforme denuncia o autor, desagrada e desencoraja experiências espirituais diretas em seus membros, porque teriam elas o potencial para criar independência, fazendo com que as pessoas não possam ser controladas.


“A verdadeira espiritualidade é universal e abrangente, e baseia-se na experiência mística pessoal ao invés de dogma ou escrituras religiosas” salienta Grof, enquanto que, na maioria das vezes as “religiões, em suas formas atuais, são parte do problema ao invés de parte da solução.”


Vale observar que muitas pessoas precisam das religiões, enquanto que muitas outras necessitam trilhar a jornada da espiritualidade e, assim sendo, a humanidade, em sua constante evolução, deve cultivar a validade de ambas as vias. O grupo pode servir para a massificação, como ocorre em muitas vezes, afastando o individuo de seu verdadeiro ser, mas a socialização, que pode acontecer dentro de uma religião, pode fornecer para o sujeito caminhos, os quais ele deverá tomar como modelos para percorrer sua própria jornada. O problema acontece quando temos aquela postura dogmática que afirma que “somente minha religião é a que salva”, infelizmente tão comum em nossa sociedade. Contudo devemos ressaltar também que na história da humanidade tivemos e ainda teremos muitos líderes religiosos e espirituais que dedicaram suas vidas a salvar e a libertar seres humanos, e isso não somente em uma religião, mas em todas elas. Nestes casos, o que acontece é que a vida espiritual e a vida religiosa estão harmonicamente integradas com a evolução pessoal e espiritual destes seres humanos, o que, de acordo com nossa perspectiva, é o que deve acontecer e é o que queremos promover. Para concluir, apontamos que não importa que nome damos, se é religião, se é espiritualidade, se é religiosidade, se é transformação da consciência, se é iluminação ou salvação, o que importa é que busquemos realizar a dimensão mais profunda de nosso ser.



Espiritualidade e Realidade


Podemos iniciar abordando a questão da transformação em nossa concepção da realidade que ocorreu com a mudança de paradigma, da Física Clássica para a Física Quântica. As descobertas da Física Quântica nos serviram enquanto humanidade como ferramentas para o questionamento da realidade, desde uma dimensão absoluta (paradigma newtoniano-cartesiano), onde temos um universo material, com tempo e espaço com dimensões bem definidas, até uma constituição indescritível, metaforicamente e talvez literalmente fluida, para além da nossa percepção ou compreensão (novo paradigma quântico-holístico). Dentro desta perspectiva, também na psicologia podemos apreender um movimento de passagem do velho paradigma para o novo, o que ocorreu dentro do movimento transpessoal e da psicologia transpessoal.


“A Psicologia Transpessoal representa uma mudança de paradigma na Psicologia Ocidental, resultando em parte da exposição a crenças interculturais sobre a natureza da consciência e da realidade.” (WALSH; VAUGHAN, 1991).


De acordo com os autores WALSH e VAUGHAN, a Física Quântica está apta a revelar, nos dias de hoje, um quadro que se assemelha de perto, sob muitos aspectos, às milenares descrições do Oriente e de suas percepções espirituais de sabedoria, onde encontramos uma realidade caracterizada por ser holística, além de interconectada, indivisível. “Não apenas cada parte do universo se acha ligada a toda outra parte”, apontam os autores, “mas que cada parte do universo, e na verdade todo o universo, está entrelaçada com todas as outras partes” (WALSH; VAUGHAN, 1991).



Espiritualidade e Visão do Humano


Em sua “Antropologia”, Roberto Crema (2002) explora quatro paradigmas para o humano que podem ser encontrados tanto nas psicologias como um todo como nas filosofias, religiões e formas de abordar e estudar o ser humano.

O primeiro pressuposto é o materialista, que afirma ser o humano apenas mais um animal, oriundo da evolução estritamente biológica da vida em nosso planeta. Está ligado à ciência materialista ultrapassada do século XIX, mas ainda hoje encontra dogmáticos defensores que afirmam ser o homem apenas seu corpo, ser a consciência um epifenômeno do cérebro, etc. Há, em segundo, o pressuposto psicossomático, que acrescenta a dimensão psicológica, porém a compreende como separada de outras questões fundamentais para o ser humano, como o sentido da vida e a espiritualidade, as quais acabam sendo relegadas.

Há, ainda, o pressuposto psico-somático-noético, fundamental para a compreensão do humano, onde podemos perceber uma abertura para a dimensão do sentido, para a alma, a dimensão contemplativa silenciosa da consciência sem objeto. Está presente aqui também a dimensão simbólica e imaginal. Esta visão pode ser desenvolvida através, por exemplo, de algumas das tradições sapienciais da humanidade, como o zen-budismo.  

Por fim, há, na quaternidade, a inteireza humana, pressuposto psico-somático-noético-pneumático, onde a totalidade do SER nos pode ser apresentada. Esta dimensão inclui o Mistério, com m maiúsculo, onde podemos apontar para o sagrado, para o Absoluto que nos ultrapassa, que nos transcende. No terceiro pressuposto encontramos auto-realização, e no quarto temos a auto-transcendência. É no quarto pressuposto que a dimensão espiritual do ser humano pode ser integrada. Citamos o autor:

“Numa singela e bela lição, Buda perguntou a seus discípulos: “O que é o oposto da morte?”Com a mente binária, todos responderam: “Vida”. Ao que o mestre sentenciou: “Não; é o nascimento, pois a Vida é eterna!” E Cristo afirmava ser o doador de Vida, de Vida em abundância: “EU SOU o Caminho, eu sou a Verdade, eu sou a Vida”. Nosso composto trinitário existencial é atravessado pelo Mistério da Vida e, agora, estamos diante do pressuposto antropológico que da guarida à vastidão do fenômeno humano: psico-somático-noético-Pneumático” (CREMA, 2002, p.33).


Roberto Crema continua sua exposição do profundamente humano nos falando das diversas estações do AMOR: segundo ele, “aprender a amar é a primeira e derradeira lição na escola da existência” (CREMA, 2002, p.35).

Para ele há um último pressuposto que precisa ser apontado, pois em nós evoca a etapa suprema na arte de amar: o amor pneumático, transumano, transpessoal. É, para o autor, o amor em seu modo de ser ontológico, que é gratuito e incondicional. Amor, desta forma, é amor espiritual, por tudo o que existe e mais além, pelo que é transcendente. Amar, nesta perspectiva, é um estado de abertura da dimensão do coração, e de atenção, de cuidado, de acolhida e de escuta. É respeitar a totalidade que habita em nós e nos outros, e talvez em tudo o que existe. “É o amor que transcende a criatura, o amor da fonte, o amor da Vida por Ela mesma” (CREMA, 2002, p.37).



Espiritualidade e Psicologia


Segundo o que podemos apontar através de Roberto Crema (2002), o sentimento de amor é a forma de promover a terapia do mistério, das dimensões misteriosas de nosso ser, e, como foi afirmado por um mestre da sabedoria, o amor é a tecnologia mais sofisticada de todos os universos. Os mais plenos e autênticos terapeutas, portanto, conforme acrescenta o autor, são os homens e mulheres que aprenderam a amar totalmente, buscando-a sempre na profundidade de nosso ser, fazendo um exercício total de doação à humanidade como um todo e à humanidade em cada um.

Conforme Welwood (2003), o trabalho psicológico pode ajudar bastante na abertura do coração, onde pode ser localizada e realizada a dimensão do amor, mas o despertar completo exige o desapego, a relativização do eu, e a entrega, sentimentos típicos do caminho espiritual. Em seu trabalho de terapeuta ele aponta ter percebido que é preciso permanecer sempre em contato com as dimensões do céu, da terra e do coração, todas elas ao mesmo tempo.

Ainda em Welwood (2003), encontramos que o trabalho psicológico ajuda a lidar com a dimensão da forma, enquanto que, por sua vez, o trabalho espiritual enfatizará o que pode ser percebido como além da forma, o transpessoal, o ilimitado. No final, ele acrescenta que a abertura para este espaço mais amplo ao redor das estruturas é o que nos possibilita que, metaforicamente, as brisas frescas da mudança e da renovação continuem circulando em nossas vidas e nas vidas de nossos pacientes.



Conclusão


Quando os indígenas nativos americanos acendiam seus cachimbos, acreditavam que o subir da fumaça levava as orações da tribo para a nação das estrelas. Nos dias de hoje, em que o mundo anda cada vez mais desequilibrado, nos questionamos se não está faltando ao ser humano uma parte sua, se não estaria ele preocupado em demasia em encontrar no consumo e não em si mesmo, em sua consciência, em sua espiritualidade, esta dimensão de conexão com o mistério que nos circunda.

É irônico como aquelas pessoas que riem e falam pejorativamente da espiritualidade são as mesmas que buscam afogar-se em álcool ou em festas intermináveis, assim como o consumo de substâncias tóxicas pesadas. Sendo elas tão certas de que a dimensão espiritual não existe, por que é mesmo que buscam nas drogas uma conexão com alguma sensação de bem esta ilusório? E o consumismo desgovernado, aquela necessidade de comprar mais um carro, mais uma casa, mais um livro, mais um lanche? Nossa sociedade está cada vez mais doente, sufocada em tanto apego à superficialidade, às ilusões do ego e das dimensões mais rasas do ser, enquanto que a propaganda nos obriga a acreditar que somos livres e donos de nossas vidas, mas que devemos ter medo da espiritualidade e do autoconhecimento, estas coisas místicas que deixam as pessoas estranhas e fora da realidade.

O mundo precisa de um sentido, de uma renovação de seus valores. A espiritualidade aponta um caminho para aprendermos a abrir nossos corações, aprendermos a ir além de nossos egos, de nossa pequenez à nossa plenitude. Caso compreendamos até aqui que a espiritualidade é uma dimensão fundamental do humano, é nossa busca entender como cultivar nosso ser mais profundo, nossa conexão com a vida e com os mistérios do universo. É este tipo de reflexão que nos torna humanos. Que a fumaça da fogueira sagrada leve nossas preces para as estrelas, para que seja semeada uma nova ordem cósmica.




Referências:



CREMA, Roberto. ANTIGOS E NOVOS TERAPEUTAS. Abordagem transdisciplinar em terapia. Petrópolis: Vozes, 2002.

GROF, Stanislav.
Breve História da Psicologia Transpessoal.
Fonte: http://www.aljardim.com.br/pt.htm. Acesso em 2011-02-18 às 16h30min.

GROF, Stanislav. Psicologia do Futuro, lições das pesquisas modernas da consciência.
Niterói, RJ: Heresis, 2000.

WALSH, Roger N.; VAUGHAN, Frances. ALÉM DO EGO.
Dimensões Transpessoais em Psicologia. São Paulo: Cultrix, 1991. 

WELWOOD, John.
Em busca de uma psicologia do despertar: budismo, psicoterapia e o caminho de transformação espiritual.
Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

terça-feira, 7 de agosto de 2012


CONSCIÊNCIA, PSIQUE E NATUREZA: ENSAIO DE UMA NOVA ÉTICA PARA UM MUNDO NOVO



INTRODUÇÃO


Vivemos em tempos difíceis, nos quais tudo aquilo que pertence à dimensão da psique é associado como inexistente ou não real. “É só psicológico”, conforme aponta a afirmação do espírito de nossa época, significa que não é nada. Tempos normóticos, nos quais o ter prefigura o ser. Tempos em que nos encontramos dissociados do que nós realmente somos, da nossa psique e da nossa verdadeira natureza. Ainda que estejamos em processo de despertar da amarras da normose consumista e de destruição da natureza, é preciso muito trabalho para que possamos regatar e preservar o nosso planeta, que é nossa casa, e preservar nossa psique, que pertence ao domínio da natureza. Nosso ser nos chama para a grande missão da ampliação e da realização de nossas consciências. Apontar para uma nova forma, e urgente, de nos relacionarmos com nossa psique e com a natureza é o objetivo deste pequeno ensaio. Os caminhos, no entanto, são coletivos, no sentido de que cabe a nós como humanidade escolher seus rumos, e também individuais, no sentido de que caba a cada um fazer sua melhor escolha, escolher viver sob um paradigma doentio e destruidor ou viver em busca de níveis mais elevados de saúde, de consciência e de vida, construindo pontes rumo ao nosso verdadeiro potencial humano.

       
                   
PSIQUE E SEU LUGAR NA NATUREZA


Nos séculos XVI e XVII ocorreu uma mudança de paradigma, ou seja, uma diferenciação radical na maneira como o ser humano encara o mundo, na qual uma metafísica da mente foi substituída por uma metafísica na qual prevalece o material. Esta mudança de paradigma, conforme chamou Thomas Kuhn, é uma mudança radical de interpretação. De modo geral, a perspectiva materialista prevaleceu durante todo o século XX e continua muito forte neste inicio de século XXI. No entanto, Jung, durante toda sua vida e obra, se posicionou contra esta perspectiva, sendo a psique humana um mundo tão vasto e complexo quando o mundo externo (CLARKE, 1993).

VON-FRANZ (1999, p.200) ressaltou que sempre encontrara o que chamava de “preconceitos filosóficos e pseudocientífico-racionais oriundos de século XIX” que para ela já haviam sido descartados pelos cientistas do século XX. Alguns desses preconceitos são os de que sonhos não têm significado, de que não existem fantasmas, de que tudo é material, de que o inconsciente não é verdadeiro e, para ela o pior, o preconceito estatístico, aquele que afirma que “o que eu faço não faz a menor diferença” (idem, p.201), pois somos todos grãos de areia entre milhões de pessoas. Ela ressalta, ao longo de seu trabalho, que, do ponto de vista da vida, absolutamente tudo importa, tudo é significativo.

Segundo CLARKE (1993, p.134) a suposição básica de Jung era a existência de uma psique autônoma, ou de uma autonomia da psique, e a realidade da psique era a hipótese com a qual trabalhava. Na verdade, este procedimento não seria mais fantástico do que postular a existência da matéria. Tanto o materialismo quanto o idealismo seriam posições metafísicas, e sobre a realidade final não poderíamos saber. Isto significa que a visão materialista de mundo está sustentada pela cresça daqueles que a postulam, pois não há provas científicas de que tudo seja material e de que o espiritual não existam. Pelo contrário, há muitos autores que dedicaram suas vidas a apontar caminhos para a exploração da dimensão espiritual, mas, por irem na contramão do paradigma materialista, são irracionalmente descartados a priori pelos pseudocientistas que apenas aceitam sua visão materialista de mundo. Neste sentido, uma estória contada pelo professor Wilson Vasconcelos Jr. na UFC ilustra bem de que estamos falando. Ela diz que quando Louis Paster apresentou na sociedade científica de Paris a existência dos microorganismos capazes de infeccionar feridas, ninguém acreditou em sua apresentação. Ele solicitou que um cientista fosse olhar no microscópio a prova científica da existência destes minúsculos seres, invisíveis a olho nu, e o cientista respondeu “vejo, mas ainda assim não acredito”. Da mesma forma ante todas as experiências e caminhos desenvolvidos para a dimensão espiritual, os cientistas materialistas, defensores de seus dogmas eternos, continuam não acreditando numa dimensão mais ampla, de energia mais sutil, a qual chamamos espiritual. Cabe a cada um de nós reconhecer a existência destes caminhos e os validar. Muitos deles puderam ser apresentados aqui mesmo, em nossa obra.

CLARKE também aponta para Thomas Kuhn e seu livro “A estrutura das revoluções científicas”, ressaltando que os grandes progressos do pensamento científico não podem ser compreendidos totalmente em termos de argumentos racionais ou como uma ininterrupta acumulação de conhecimentos. Ao surgir um Darwin ou um Newton, ocorrem transformações totais, não quais a amaneira de se encarar o mundo foi totalmente modificada.
A psique deve ser encarada como se fosse um ator principal no palco do mundo.  Assim, a encarnação, o corpo, é essencial para a psique, de modo que o corpo é a visibilidade da psique, do mesmo modo que ela, a psique, é a experiência psicológica do corpo, sendo os dois, portanto, interdependentes. Podemos dizer que:

“ela só opera dentro e através do mundo da natureza, é em si um fenômeno natural, “um organismo psíquico vivo”, com características de vida e crescimento análogas às do mundo orgânico” (CLARKE, 1993, p.138).

Assim, para Jung, em sentido lato, a psique é um organismo vivo, que cresce, amadurece, e pode sofrer vicissitudes de maneira análoga ao que acontece com os seres orgânicos. É a psique um afloramento natural, e podemos buscar sua origem no mundo natural, mas “tal como a flor de lótus – para usar a metáfora budista clássica – eleva-se acima de suas origens puramente naturais e as transcende.” (idem, p.138 e139).

Ainda segundo CLARKE, é importante então pensarmos por qual propósito a psique existe, principalmente no que diz respeito à consciência. A razão das funções psicológicas emergirem à luz da consciência é devido ao fato de ela conferir alguma vantagem adaptativa. Ressaltamos o caráter de hipótese do que está sendo aqui apontado. A consciência permitiria nossa adaptação mais bem organizada, permitindo que fôssemos além dos instintos.

“A razão por que a consciência existe, e por que há uma ânsia para alargá-la e aprofundá-la, é muito simples: sem consciência as coisas não funcionam tão bem. Essa é obviamente a razão por que a Mãe-Natureza dignou-se a produzir consciência, a qual é a mais notável de todas as curiosidades da natureza”. (JUNG apud CLARKE, 1993, p.140).

Para finalizar, precisamos então apontar para onde deverá ir a consciência, resguardando a perspectiva teleológica de Jung, segundo a qual tudo o que existe não existe somente por causa de, mas existe para alguma finalidade. Voltando a CLARKE, ele aponta ser a consciência um tremendo experimento que a natureza outorgou para a humanidade. Seu papel estaria associado ao seu poder criador, e é somente através dessa criatividade que o seu humano encontraria seu lugar no grande processo do ser. Assim a criatividade, função da totalidade da psique, que amplia e transforma a consciência, talvez seja o verdadeiro motivo de estarmos aqui, ou pelo menos seria a porta a qual teríamos que ultrapassa para começar a jornada em busca de nossas respostas. A consciência tem o papel ativo de criar, como o artista executa a obra, entretanto a criatividade emerge de profundezas da totalidade da psique, consciente e inconsciente, e é capaz de criar a própria psique, fazendo-a crescer, ampliar-se e transformar-se.



PATOLOGIA COLETIVA DA SEPARATIVIDADE


Ainda que psique e natureza estejam entrelaçadas, não podendo existir de maneira independente uma da outra, vivemos sob a égide de uma patologia coletiva que nos faz esquecer de que dependemos da natureza para nossa própria existência. Enclausurados no paradigma mecanicista newtoniano-cartesiano, acreditamos, ou nos iludimos, agindo como se fossemos independentes do meio ambiente que nos cerca. Esta maneira desviada de ver as coisas foi apontada por WEIL (2011, p.15) como fantasia da separatividade, uma correspondente do conceito de maia da filosofia oriental.

WEIL (idem, p.83) aponta-nos ainda para uma normose de consumismo, uma patologia coletiva que, no entanto, é vista como se fosse normal, segundo a qual acredita-se que os recursos da natureza seriam infinitos, cabendo ao ser humano consumir também de maneira infinita. Agimos como se a natureza fosse criada para nós, e como se pudéssemos dispor dela de maneira irrestrita e a nosso bel prazer, o que está nos levando a um ponto critico de crise civilizacional e planetária. Somente uma nova perspectiva ética, a ética de cuidado integral, baseada em um paradigma integral e holístico, pode nos fazer avançar diante deste desafio evolutivo. Não estamos separados da natureza. Formamos uma unidade indissociável e somos um só com tudo o que é vivo, com todo o nosso planeta e com o cosmos.



ÉTICA DO CUIDADO


De acordo com o teólogo Leonardo Boff (1999, p.133) nosso planeta Terra merece ser cuidado de modo especial, pois temos unicamente a ele para viver e para habitar. Porém, devido ao assalto predatório do processo industrialista dos últimos duzentos ou trezentos anos, estamos à beira de um colapso ambiental. E ainda pisamos no acelerador. “Para cuidarmos de nosso planeta precisamos todos passar por uma alfabetização ecológica” - afirma BOFF, “e rever nossos hábitos de consumo”. Para ele, o velho paradigma, abraçado pelas nações imperialistas, estaria na raiz do problema. “Importa desenvolver uma ética do cuidado”, conclui.

Do mesmo modo que é necessário cuidar do planeta, de maneira universal, precisamos cuidar dos nichos ecológicos, situado a nível local. “o ser humano tem os pés no chão (local) e a cabeça aberta para o infinito (global).” (idem, p.135). Portanto, cada um de nós, como indivíduos e como comunidades locais, precisa descobrir-se como parte do ecossistema local, seja na forma de natureza, seja em seu caráter de cultura. Assim sendo, é preciso ampliar nossa dimensão de cuidado para que possamos apontar para o cuidado com a sociedade sustentável. “Dever-se-ia falar de sociedade sustentável ou de um planeta sustentável como pré-condições indispensáveis para um desenvolvimento verdadeiramente integral” (idem, p.137).

Cuidar do outro deve ser um valor posicionado como principal em nossa abordagem ética. Segundo BOFF, “Cuidado especial merecem os doentes, os idosos, os portadores de algum estigma social, os marginalizados e excluídos” (p.138). Ele aponta ainda para a necessidade de cuidar dos portadores de HIV, dos portadores de necessidades especiais, dos pobres, dos oprimidos e dos excluídos. Cuidar ainda de nosso corpo, da vida que o anima. Segundo ele,

“Cuidar do corpo significa a busca de assimilação criativa de tudo o que nos possa ocorrer na vida, compromissos e trabalhos, encontros significativos e crises existenciais, sucessos e fracassos, saúde e sofrimento. Somente assim nos transformamos mais e mais em pessoas amadurecidas, autônomas, sábias e plenamente livres.” (idem, p.145).

Dentro de nossa perspectiva de ética do cuidado, precisamos estendê-lo para o cuidado com nossa alma, com nosso espírito, com nossa cura integral e com a nossa grande travessia, a morte. Para BOFF, cuidado com a nossa saúde é manter uma visão integral, buscando equilíbrio entre corpo, mente e espírito, visando assim à totalidade de nosso ser humano. Assim, é preciso também cuidar de nossa alma, dos nossos sentimentos, sonhos, visões e utopias, dos desejos mais profundos, de tudo aquilo que guardamos na profundeza do nosso coração. “O ser humano-corpo-alma tem uma singularidade: pode sentir-se parte do universo e com ele conectado” (idem, p.149). Importa cuidar, também, de nosso espírito, dos valores que dão rumo à nossa vida e que geram esperanças para além de nossa morte.

“Os sábios de todos os povos sempre pregaram: sem o cultivo desse espaço espiritual, o ser humano se sentirá infeliz e doente e se descobrirá um errante sedento em busca de uma fonte que não encontra em lugar nenhum; mas se acolher o espírito e Aquele que o habita, se encherá de luz, de serenidade, e de uma imarcescível felicidade” (BOFF, 1999, p.151).

Cumpre-nos o cuidar também de nossa morte, a grande travessia, o que quer dizer que devemos aprender sobre o morrer e o mais além, e aprender a cultivar a esperança, nosso desejo de Infinito. “É meditar, contemplar e amar o Infinito como o nosso verdadeiro Objeto do desejo” (idem, p.153). BOFF conclui: ”é realizar a experiência dos místicos: a vida amada no Amado transformada.” (p.154).



CONCLUSÃO


Esperamos que nossa exposição tenha feito sentido, e encontre ressonância no pensamento de cada vez mais seres humanizados que devemos ser. No plano individual, esperamos que cada um de nó procure e transforme todas as normoses e patologias que nos impedem de ser o que verdadeiramente somos, e que cada um possa abraçar seu caminho de individuação, sua jornada de autoconhecimento e espiritualidade, no sentido de encontro com seu verdadeiro Ser.  No plano coletivo, esperamos que uma revolução paradigmática transforme nossa maneira de nos relacionar com nosso planeta e com a natureza, com tudo o que é vivo. A grande transformação paradigmática que é exigida de nós não pode ser feita individualmente, senão coletivamente, e, no entanto, é preciso que cada um possa cultivar uma nova disposição de consciência, promovendo novos valores mais adaptados com este momento de nossa jornada evolutiva coletiva. É preciso que busquemos nosso verdadeiro SER mais profundo. Somente assim poderemos viver a verdadeira vida. Somente assim poderemos criar um mundo novo. Gostaríamos de concluir com estas palavras, um conto xamânico, apresentado por Roberto Crema:

“Uma anciã indígena conversava com seu neto: Há, no meu coração, dois lobos, meu filho. Um é furioso, cruel, destrutivo, egocêntrico. O outro é doce, amoroso, compassivo, pacífico. Eles brigam entre si, no meu coração. E o neto perguntou: Qual deles vencerá esse combate? E a sábia respondeu: Aquele que eu alimentar!” (CREMA apud WEIL, 2011, p.96).




REFERÊNCIAS


BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: Ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

CLARKE, J. J. Em busca de Jung. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993.

VON-FRANZ, M. L. Psicoterapia. São Paulo: Paulus, 1999.

WEIL, P(org). Normose: A patologia da normalidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. 

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A RELIGIOSIDADE NA PSICOLOGIA ANALÍTICA



INTRODUÇÃO


Admirado por muitos, repudiado por outros, Carl Jung representou um papel fundamental para a Psicologia, criando uma abordagem que caminha para tornar-se uma via clássica, epistemologicamente sólida devido à alta competência de seu criador e aos anos de árduo trabalho em sua elaboração. A Psicologia Analítica é crescente tendência hoje, inclusive na academia, quando começam a tomar cada vez mais corpo as discussões e o interesse no caminho desenvolvido por Jung. Para a Psicologia Transpessoal, Jung é colocado como um precursor, alguém que abriu caminhos para pensarmos o ser humano para além de seu ego ou eu consciente, haja vista que a personalidade humana apresenta muitos outros aspectos a serem descortinados. O eu e a consciência deste eu não são a totalidade do ser, e o trabalho de Jung, por um lado pioneiro, por outro um dos mais competentes, deve ser compreendido quando pensamos em caminhos para a Psicologia no século XXI.
O texto presente, para o blog, é parte de uma elaboração posterior de uma aula que tivemos a oportunidade e o prazer de ministrar na disciplina de Psicologia e Espiritualidade, da qual obtivemos a bolsa de iniciação à docência. O professor doutor Gustavo Pereira de Moura, ao qual somos imensamente gratos, nos ofereceu a oportunidade de ministrarmos sobre psicologia analítica e espiritualidade, pedindo para que ressaltássemos a dimensão religiosa e transpessoal na Psicologia Analítica, haja vista que é uma leitura sua, ou por ele comumente divulgada, a de que pode ser encontrada, para além da Psicologia Transpessoal, a Dimensão transpessoal nas Psicologias de modo geral. Mais precisamente, Jung utilizou o termo religiosidade, diferenciando-o de profissão de fé, de maneira análoga a diferenciação didática que fazemos entre espiritualidade e religião. Trabalharemos a questão a partir do texto de Nise da Silveira, a psiquiatra responsável por trazer a Psicologia Analítica de Jung para o Brasil.


PSICOLOGIA ANALÍTICA E RELIGIOSIDADE

Para abordamos a temática da religiosidade em Jung, utilizaremos o texto de Nise da Silveira (SILVEIRA, 1981). Segundo ela, Jung usa a palavra religião no sentido de religio (re e ligare), tornar a ligar. Religar o consciente com certos poderosos fatores do inconsciente a fim de que sejam tomados em atenta consideração.
Estes fatores, de natureza arquetípica, caracterizam-se por suas fortíssimas cargas energéticas e seu intenso dinamismo. Aqueles que os defrontam falam de uma emoção impossível de ser descrita, de um sentimento de mistério que faz estremecer (mysterium tremendum). Para designar esta vivência Rudolf Otto (2009) criou o termo: numinoso, experiência do numinoso, expressões que Jung adotou. Santo é um termo que expressa algo mais do que bom, e este algo mais é o numinoso, um termo que contém um excedente de significação que vai além do racional (OTTO, 2009). Todas as religiões originam-se basicamente de encontros com esses fatores dinâmicos do inconsciente, seja em sonhos, visões ou êxtases. (SILVEIRA 1981).
Segundo a autora, esses fatores apresentam-se encarnados em imagens dos mais diversos aspectos: deuses, demônios, espíritos. Para ela, Jung reconhece “todos os deuses possíveis e imagináveis, sob a condição única de que sejam ou tenham sido atuantes no psiquismo do homem".


A IMPORTÂNCIA DA RELIGIÃO

Do ponto de vista de Jung, ainda segundo SILVEIRA (1981), a religiosidade é uma função natural, inerente à psique. Para Jung a religião apresenta-se como um fenômeno genuíno, expressão legitima do ser humano, o que é diferente de algumas compreensões que visam patologizar a dimensão da espiritualidade, aproximando-a ou a igualando aos transtornos mentais. Jung toma atitude positiva em relação às religiões. Todas são válidas na medida em que recolhem e conservam as imagens simbólicas oriundas das profundezas do inconsciente e as elaboram em seus dogmas, promovendo assim conexões com as estruturas básicas da vida psíquica (SILVEIRA, 1981). Fazemos a diferenciação, no entanto, apontando que Jung defendia a religiosidade, uma vida na qual os símbolos religiosos estariam vivos e atuantes, mas a ele não agradavam as profissões de fé, onde se encontram símbolos mortos e dogmas ultrapassados com regras que mais nos afastariam da dimensão do sagrado que nos religariam.


REALIDADE PSÍQUICA E RELIGIOSIDADE

Para SILVEIRA (1981), não importa que todas as afirmações religiosas sejam impossibilidades físicas. “o critério de uma verdade não é apenas seu caráter físico: há também verdades psíquicas que, do ponto de vista físico, não podem ser explicadas ou demonstradas, nem tão pouco recusadas“ (JUNG apud SILVEIRA, 1981).
O estudo da religiosidade humana tem um princípio muito importante que é o da realidade psíquica, postulado por Jung. Para ele, a única realidade a qual temos acesso é a realidade psíquica, oriundas de um processo de representação e significação do mundo, o externo, a vida, a natureza e a cultura, e o interno, as fantasias, os símbolos, os afetos, os produtos do inconsciente. Para melhor compreendermos, chamamos para o diálogo o autor JESUINO:
“o mundo que interessava a Jung era o mundo psíquico, visto que, por não nos ser dada a conhecer a natureza do mundo externo ou do interno, sequer poderíamos dizer se, em última instância, são duas coisas ou uma só. Do ponto de vista psicológico, porém, podemos verificar que se apresentam como pólos para a consciência, Deste ponto de vista, o único aspecto que podemos lhes apontar em comum é que desconhecemos sua natureza.” (JESUINO, 2008, p.122).

Assim, retomando nossa linha de raciocínio, conforme o concito de realidade psíquica, não podemos afirmar se existem ou não existem os fenômenos como fatos, não podemos dizer se Deus existe de fato, por exemplo, mas podemos dizer que, na realidade psicológica, existe o fato de as pessoas crerem em Deus. Do mesmo modo, podemos compreender que, em Jung, não se pode afirmar definitivamente que qualquer crença religiosa é verdadeira ou falsa em si, se é uma realidade concreta, ainda que seja uma realidade psíquica, pois não temos certezas absolutas sobre esta outra realidade e nem sobre nossa própria realidade.
A título de exemplo, tomemos uma pessoa que acredite em milagres. Não importaria para Jung se os milagres são ou não de fato reais, mas mais o importaria o fato de que esta pessoa crê, pois, de modo independente de uma realidade concreta, temos uma realidade simbólica na qual esta pessoa está inserida e na qual ela vivencia e organiza suas experiências, devendo então ser validada pelo estudante ou pelo psicólogo. A nível coletivo, interessará para a psicologia como objeto de estudos as grandes práticas espirituais, por exemplo; o que faz milhares de pessoas acreditarem em discos voadores, independentemente de eles existirem ou não? Que fatores psíquicos seriam estes que estariam atuando na psique individual e coletiva? Assim, defendemos, deve proceder o profissional de Psicologia no relacionar-se com a religiosidade de seus pacientes. Do ponto de vista da realidade psicológica, é um fato que as pessoas vivenciam de diferentes modos e em diferentes culturas uma espiritualidade ou uma religiosidade, e este fator, em si, faz desta uma questão fundamental para a psicologia. É a espiritualidade uma realidade em todas as culturas e em todas as épocas, o que a torna um fenômeno psíquico suficientemente digno de ser apreciado pela pesquisa em psicologia.


LINGUAGEM SIMBÓLICA

A autora SILVEIRA (1981) nos aponta que a linguagem das religiões é feita de símbolos, e esses símbolos, ao longo dos tempos, sem dúvida têm atuado profundamente sobre a vida dos homens. Merecem, portanto, a atenção do psicólogo. Jung interessou-se pelos símbolos de todas as religiões da humanidade, tanto do ocidente quanto do oriente. Entretanto, o autor ocupou-se especialmente em sua obra dos símbolos cristãos, principalmente os interpretando em comparação com a alquimia e com a sua Psicologia Analítica. Como ressaltamos, precisamos de uma religiosidade ou espiritualidade viva, com símbolos atuantes, capazes de ampliar nossas consciências e nos reconectar com a dimensão maior da vida, seja qual for o nome que lha demos.


CONCLUSÕES

Podemos apontar, em suma, como pudemos observar ao longo desta exposição, que a religiosidade conforme Jung é uma função natural da psique. O termo religião, para ele, significa tornar a ligar, nos reconectando com uma dimensão maior à qual pertencemos, por um lado, e ligando os elementos inconscientes com a consciência, fazendo-a ampliar-se, por outro. Jung aponta a existência de uma realidade psíquica, a qual é fundamental para compreendermos e aceitarmos que a religiosidade ou espiritualidade é uma dimensão real e atuante nas nossas vidas psíquicas, ainda que não seja material, palpável ou concreta. A linguagem das religiões é simbólica, e é preciso que busquemos nos habituar a ler e a compreender esta linguagem para aprendermos o que querem nos ensinar as tradições religiosas.
Segundo SILVEIRA (1981), através das páginas das MEMÓRIAS, Jung revela-se como um homem para quem Deus era “uma experiência imediata das mais certas”. Numa entrevista famosa concedida à BBC de Londres dois dias antes de completar 80 anos, Jung declarou: "Não necessito crer em Deus: eu sei (I know).” Com isso, para ela, não pretendeu dizer: “Conheço um certo Deus (Zeus, Jeová, Allah, o Deus Trinitário, etc), mas: sei com segurança que me confronto com um fator desconhecido em si, ao qual chamo Deus".  Jung fez gravar em pedra, no alto da porta de sua casa de Küsnacht, as palavras do oráculo de Delfos: INVOCADO OU NÃO INVOCADO DEUS ESTARÁ PRESENTE.


REFERÊNCIAS


JESUINO, Filipe de Menezes. O Delírio Paranóico no sistema de Freud e Jung: Contribuições Mútuas e Contrastes. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2008.

OTTO, Rudolf. Lo santo: Lo racional y lo irracional en la Idea de Dios. Madrid, Alianza Editorial, 2009.
SILVEIRA, Nise da. JUNG: VIDA E OBRA. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.